Gerontóloga acha que Brasil precisa encarar a morte de frente

Ana Cláudia Quintana Arantes tem 50 anos, é médica, gerontóloga e especialista em cuidados paliativos. Autora do best seller A morte é um dia que vale a pena viver, acha que passou da hora dos brasileiros tratarem desse tema-tabu, que poucos querem encarar. Para ela, o Brasil de hoje, tem um espaço bem macabro em relação aos cuidados de fim de vida “Macabro no sentido da insensibilidade sobre as necessidades de cuidado no sofrimento” disse em entrevista a este blogueiro para a série inédita do SESCTV Envelhecer. Alguns trechos da conversa:

P- O Brasil enfrenta bem a morte?

Somos imaturos frente à percepção da morte. Se você tem um diagnóstico de uma doença que ameaça a vida, você vai lutar pela vida. Vai estabelecer uma guerra com a doença. Esse é um pensamento que gasta energia e não serve pra nada. Você devia encarar que isso, a doença, chegou na sua vida. Eu tenho um caminho junto dessa doença e vou ter que me dedicar para conseguir o melhor. Não é uma guerra, porque a doença faz parte do meu corpo agora. Então, você vai entrar em contato com essa novidade do seu corpo e vai interagir com o seu corpo para favorecer a recuperação. Quem descobre, por exemplo, que está com um câncer de pulmão ou um problema cardíaco e pergunta o que adiantou ter cuidado do seu corpo, feito ginástica, não entendeu o que fez. Você tem que cuidar do corpo porque é a nave que você habita. É através do seu corpo que você se realiza. Você tem que se movimentar para chegar nos lugares onde você vai se sentir bem, onde você vai se realizar profissionalmente, emocionalmente, com a sua família. Você precisa respirar, você precisa ter uma função mínima do seu corpo em funciona, em plenitude para usufruir da alegria de estar vivo. Se você não cuidou do seu corpo por este motivo, você cuidou pelo motivo errado.

É preciso se preparar para adoecer e a ideia de transcender, de se superar, é diferente da ideia de luta, que pressupõe um ganhador e um perdedor. A doença não acredita nada, a doença existe. Ela segue o rumo dela. Não existe uma entidade doença, que chora porque ficou em segundo lugar. A doença ocupa o lugar que ela tem que ocupar.

P- Há como medir qualidade da morte em países diferentes?

Sim. Morremos mal no Brasil, porque não aceitamos a condição de finitude e os que aceitam não encontram profissionais de saúde, médicos, instituições que consigam cuidar dessa pessoa a partir da experiência do sofrimento, não só pela experiência da doença. Só 0,3% dos pacientes tem acesso aos cuidados paliativos no Brasil. Esse é o último índice avaliado, foi em 2015, quando num estudo envolvendo 83 países, ficamos em 42o lugar, abaixo de Uganda. Nem 50 das nossas 331 faculdades de Medicina incluem os cuidados paliativos na formação. Poucos médicos sabem lidar com uma situação de finitude.

P- O que que os cuidados paliativos podem oferecer a quem está no fim da vida?

A doença não vai ter cura, mas vai ter controle. Com cuidados paliativos, os pacientes vivem mais tempo. Cuidamos do sofrimento físico, relacionado à doença e da dimensão emocional, porque ninguém está preparado para, de fato, perceber a morte chegando, vai experimentar medo, culpa, mágoa, arrependimento, uma negação, que muitas vezes se transforma em aceitação. Uma montanha russa emocional que permeia essa experiência é que pode ser cuidada também.(…) A sociedade brasileira é uma sociedade que crê. E aí, tem o seu Deus, tem o meu, tem o deus de cada um aqui e o que vai te trazer propósito no fim da vida – numa pesquisa também que foi feita com essa percepção de que que é valioso no, no último dia de vida que você vai ter por aqui, é estar em paz com Deus. Os cuidados paliativos permitem oferecer profissionais capacitados pra avaliar essa dimensão de cada paciente.

P- A qualidade da morte do paciente é de inteira responsabilidade do médico?

Não. É um trabalho feito com muitas mãos, muitos corações e muitas mentes. Pode ser ajudado pelo médico, pelo psicólogo, pelo enfermeiro, pelo assistente social, por todos os membros profissionais de saúde da equipe. Que vão ser como se fossem diretores de cena, vamos dizer assim, para proporcionar a realização daquele paciente. E devemos ter a família junto. Porque, num primeiro momento, a família é um alvo de cuidados, mas, a partir do momento em que conseguimos cuidar dela, ela se incorpora a esse processo de cuidar. O processo de morrer é solitário, é do paciente. Mas tudo que é vivenciado ao redor desse processo é comunitário.

P. Qual o papel do Estado nesse fim de vida?

Era um papel bastante distanciado, porque o Estado se comporta como reflexo da sociedade que o compõe, que negando esse processo de morte. Desde novembro de 2018, temos uma normativa sobre os cuidados paliativos no SUS. Está aprovado, reconhecido. Precisamos agora ter quem faça. Temos que mostrar ao que viemos, sem mi-mi-mi.

P- Em termos de custo, os cuidados paliativos são tão expressivos como os do tratamento?

O entendimento do cuidado paliativo como a arte de suspender tratamento é um dos grandes pesos que eu e os meus colegas e todo mundo que faz cuidado paliativo carrega. É como se olhassem pra gente e falassem assim: ah, vocês são os especialistas e não vão fazer nada, porque não tem nada pra fazer, então vocês não fazem nada, vocês tiram tudo. Só que isso é um grave erro. A questão é a capacidade desse profissional de avaliar o que o paciente está recebendo e ajustar o que é oferecido para as necessidades dele. Pode ser que ele precise fazer uma diálise, pode ser que ele precise de uma transfusão, de uma cirurgia.

E o entendimento das pessoas é assim: ué, mas não pode gastar nada. Então, existe um custo, só que é um custo, é, da, diretamente relacionado `que equidade de recursos. Você vai dar tudo pra o quem pode aproveitar cada um dos procedimentos que são oferecidos.Quando você tem o discernimento do que que é melhor para ser feito em termos de qualidade de vida, você consegue fazer as melhores escolhas. Porque aí, você não vai, é, colocar o paciente na UTI, porque vai piorar a vida dele e ele quer ficar com a família. A consequência de um cuidado paliativo bem feito é redução de custo, mas ela não é o objetivo do cuidado. Eu não olho para o paciente e vou ver quanto que eu posso gastar a menos. Eu olho para o paciente e vejo o que que eu posso fazer para ele ser feliz.

P- Isso vai na contramão da indústria.

Vai, mas a indústria também é feita de pessoas. E elas vão morrer também. Governo, Estado, indústria… essas entidades são feitas de pessoas e essas pessoas também são mortais. Você pode ter o poder que tiver, mas não vai convencer ninguém a morrer no seu lugar. Pode ter o dinheiro que você for e pode morrer numa cama de ouro, mas sua morte pertence a você, não compra ninguém para ficar no seu lugar. Esse processo é um processo de consciência humana, não de poderes.