Lições da gripe espanhola em tempo de coronavírus
Muito se tem escrito e falado sobre os idosos e o coronavírus. As certezas assustam e preocupam e recomendam que nós, os mais velhos sejam ainda mais rigorosos no cumprimento das recomendações e determinações. Confesso que tenho tido certa dificuldade em assumir minha condição de integrante do grupo de risco, mas diante das incógnitas e da chance de chover no molhado ou pior, de arriscar palpites sobre assunto que merece ficar a cargo de quem realmente entende do assunto –médicos, cientistas, pesquisadores, este blog olha para trás. Mais exatamente, para 1918 e 1919, quando a chamada gripe espanhola (que nem começou na Espanha) ou mais precisamente o vírus da influenza, matou entre 50 a cem milhões de pessoas pelo mundo todo. Entre aquela pandemia e a atual há grandes diferenças, mas podemos extrair certas lições.
De lá para cá, o mundo parece ter ficado menor –basta lembrar que quando o influenza se disseminou, os aviões eram uma novidade pilotada por malucos. Os zepelins pareciam ser mais confiáveis e a primeira companhia aérea a usar aviões, a Aircraft Transport and Travel, do Reino Unido, surgida dois anos antes, ainda estava usando biplanos de guerra modificados para transportar dois passageiros em uma única linha (a aposta deu certo e pouco depois, a empresa fabricava um aeroplano a cada 45 minutos).
Podemos aprender, por exemplo, com o exemplo de Saint Louis, no estado do Missouri, no centro-oeste americano, que tinha cerca de 700 mil habitantes naquele momento. Mesmo antes do primeiro caso de gripe espanhola ter sido relatado na cidade, o comissário de saúde, o doutor Max Starkloff colocou médicos locais em alerta máximo e publicou um editorial no St. Louis Post-Dispatch sobre a importância de evitar multidões.
Quando a gripe ultrapassou os muros de um quartel militar para alcançar os civis, Starkloff conseguiu que o prefeito ordenasse o fechamento das escolas, igrejas, cinemas, tribunais e salões de bilhar e proibisse todas as reuniões públicas, apesar da grita dos empresários. A epidemia avançou mais devagar, permitindo que os doentes fossem tratados em casa por enfermeiras voluntárias.
Saint Louis aplicou a tática de achatamento da curva de expansão da epidemia, que hoje justifica as medidas adotadas em vários países, no sentido de diminuir as chances de contágio, mantendo as pessoas em casa e tentando reduzir a pressão sobre o sistema d saúde. O resultado é que a taxa de mortalidade máxima em Saint Louis foi apenas um oitavo da mesma taxa de em Filadélfia.
Na maior cidade da Pensilvânia, a 1400 quilômetros de distância (duas vezes maior que Saint Louis), um desfile de apoio ao esforço de guerra levou 200 mil pessoas às ruas. Três dias depois, todas as camas dos 31 hospitais de Filadélfia estavam ocupadas por doentes ou moribundos. Até o final da semana, mais de quatro mil e quinhentos moradores tinham morrido.
No Brasil, a gripe espanhola chegou a bordo de um navio e deixou dezenas de milhares de mortos –incluindo o presidente eleito, Rodrigues Alves. Mas a imprensa da época não levou a pandemia muito a sério-– quando pode tratar do assunto, pois a censura se abateu sobre o noticiário.
No Rio de Janeiro com 910 mil habitantes, a célebre revista Careta tratou o caso desse modo na edição 537: “esta moléstia é uma criação dos alemães que a espalham pelo mundo inteiro, por intermédio de seus submarinos, (…) nossos oficiais, marinheiros e médicos de nossa esquadra, que partiram há um mês, passam pelos hospitais do front, apanhando no meio do caminho e sendo vitimados pela traiçoeira criação bacteriológica dos alemães, porque em nossa opinião a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, carregada de virulência pelos sabichões teutônicos, engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados, de maneira que, levadas pelas ondas para as praias, as garrafas apanhadas por gente inocente espalhem o terrível morbus por todo o universo, desta maneira obrigando os neutros a permanecerem neutros”. Para Careta, a gripe trazia consigo “a ameaça da medicina oficial, da ditadura científica”.
Adriana da Costa Goulart, no artigo “Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro”, publicado na revista História, Ciências, Saúde- Manguinhos, volume 12, de janeiro a abril de 2005, assinala o prejuízo causado pela censura imposta à imprensa pelos militares e pelo total desaparelhamento das instituições sanitárias federais. “O Serviço de Profilaxia do Porto foi a primeira Seção da Diretoria de Saúde Pública a ser alvo das críticas da opinião pública. A referida seção não tinha como realizar a desinfecção de todos os navios que aportavam na capital federal. A aplicação de quarentenas em embarcações era considerada antinatural, pois acarretava problemas políticos, econômicos e sociais. No calor da hora, o inspetor sanitário do porto do Rio de Janeiro, Jayme Silvado, foi acusado de favorecer a entrada da epidemia, pois consentiu na atracação do Demerara, pois, sendo ‘positivista, não acredita em micróbios’”.
Sem respaldo científico e informação precisa, a população recorreu a crendices e fórmulas milagrosas. A teoria dos miasmas, formulada por Thomas Sydenham e Giovani Maria Lancisi no século 17, que relacionava as doenças com os odores fétidos provenientes de matéria orgânica em putrefação nos solos e lençóis freáticos contaminados, voltou à moda. Tomar suco de limão ou doses de quinino também virou mania, a ponto de as pessoas desmaiarem nas ruas pelo exagero com o quinino. Atribuem até a invenção da caipirinha à gripe espanhola. “se pinga com limão cura urucubaca, por que não cura a gripe espanhola”, diziam pelos botecos.
Ou seja, não é de hoje que temos de combater fake news e propagadores das trevas. Mas se no século 21 levamos os vírus de um lado a outro do planeta aos milhões –no ano passado, o total de passageiros transportados pelo ar passou de 4,5 bilhões–- temos a vantagem de que a informação anda mais rápido ainda. E isso talvez nos ajude a enfrentar a nova pandemia, desde que sejamos capazes de separar o joio do trigo –-e usar o trigo.