Em Tempo https://emtempo.blogfolha.uol.com.br Velhices, longevidade, superação Wed, 26 Aug 2020 17:32:57 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Fui abastecer, achei que era Alzheimer https://emtempo.blogfolha.uol.com.br/2019/02/21/fui-abastecer-achei-que-era-alzheimer/ https://emtempo.blogfolha.uol.com.br/2019/02/21/fui-abastecer-achei-que-era-alzheimer/#respond Thu, 21 Feb 2019 23:20:53 +0000 https://emtempo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/Alois_Alzheimer_003-300x215.jpg http://emtempo.blogfolha.uol.com.br/?p=45 Aconteceu nas últimas férias de verão, aqui em Portugal. Netas, filho e nora para a praia, não cabiam num carro e alugamos dois. No volante de um deles, vi que era preciso abastecer – o outro tinha combustível suficiente. Como qualquer consumidor na Europa, liguei a bomba, coloquei a mangueira no bocal do tanque e fiz o serviço que no Brasil, cabe aos frentistas. Tanque cheio, conta paga, arranquei. Menos de um quilômetro depois, pimba! Pane no motor. Foi quando me dei conta da besteira: enchera o tanque do carro a gasolina com gasóleo, ou diesel para nós. As duas bombas ficam lado a lado e na correria e excitação, misturei as bolas.
Liguei para a locadora e informei o ocorrido. Disseram que iam mandar um reboque e um táxi. As “meninas” seguiram para a praia num carro, enquanto eu e meu filho acompanhamos o outro até o páteo de recolha dos carros avariados, de onde o táxi nos levou até a locadora. Ali, para nosso desencanto e desespero, ficamos sabendo que o seguro não cobria meu erro, classificado de “negligência”. Teria de alugar outro carro e pagar o prejuízo – uma nota. Tentei a saída brasileira – o jeitinho. E se eu consertasse o carro? O atendente disse que ninguém havia tentado antes e que nesse caso, o problema seria nosso.
Voltamos ao pátio, conseguimos uma empresa especializada em trocar combustível ( a negligência é frequente, pelo visto) e horas e algumas centenas de euros mais tarde, chegamos à casa alugada.
Na volta, o carro que nos levara até lá sem problemas deu pane e foi rebocado até a locadora. Parece que a troca de combustível não resolveu tudo e ao abastecer novamente, agora com gasolina, o motor deu problema. No dia seguinte, fui devolver o outro carro. Tanque vazio, parei no posto, olhei duas vezes para as bombas, antes de abastecer. Alguns metros adiante, outra pane no motor. Estava tão certo de ter colocado gasolina que caminhei pela margem da autopista, arriscando a vida, até alcançar o posto e me dar conta de que enchera com gasóleo, mais uma vez. Moral da história – um prejuízo enorme, que destruiu o planejamento financeiro das férias e dos meses seguintes.
Pior foi a conclusão a que cheguei: só podia ser Alzheimer. Já havia começado as pesquisas para os documentários sobre envelhecimento, que levaram a este blog, mas ainda não entrevistara nenhum especialista. Esperei ansioso pela consulta com minha médica de família, aqui em Lisboa. A jovem doutora ouviu minha história e depois de conter o sorriso, fez várias perguntas:
– Sabe o nome dos seus filhos? Sabe onde mora? Lembra o nome de objetos de uso comum?
Diante das respostas afirmativas, dispensou qualquer exame mais complicado e receitou um remedinho para a memória. De volta ao Brasil, a jornalista Claudia Erthal, que divide comigo a direção da série Envelhecer, ainda em produção, foi conversar com a médica Claudia Suetomo. Professora doutora da Disciplina de Geriatria da FMUSP, ela é pesquisadora do Biobanco para Estudos em Envelhecimento da FMUSP e do Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (ELSA-Brasil). Em seu doutorado, pesquisou a associação entre fatores de risco cardiovascular e demência.
Claudia explicou que por volta dos 30 anos, todos começamos a perder neurônios, sem reposição. Diminui também a complexidade das comunicações entre os neurônios que se assemelham a árvores que vão perdendo os galhos – a rede dendrítica, na terminologia científica.
Assim, ao envelhecermos, vamos ficando mais lentos, temos mais dificuldade de aprender. É por isso que nossos netos (ou filhos) são capazes de descobrir como funcionam as novas bugigangas eletrônicas que nos tiram a paciência.
“Eu até brinco com os alunos aqui, eles conseguem fazer quatro coisas ao mesmo tempo. Eles conseguem prestar atenção na aula, responder um e-mail, depois ver um twitter e ainda falar com o cara do lado e tá tudo bem. Quando a gente fica mais velho, não fica tão rápido pra fazer quatro, cinco coisas ao mesmo tempo. Temos de ter o discernimento de fazer uma coisa de cada vez pra fazer bem feito.”
Alzheimer é uma grande ameaça. É um tipo de demência que provoca uma deterioração global, progressiva e irreversível de diversas funções cognitivas (memória, atenção, concentração, linguagem, pensamento, entre outras). Nas fases iniciais, manifesta-se muitas vezes por lapsos de memória e dificuldade de encontrar as palavras certas para objetos do cotidiano. Seu diagnóstico é complexo e só se torna efetivo com a autópsia do portador. Quem resolve colocar as bombas de gasolina e gasóleo lado a lado e empoderar os consumidores, eliminando os frentistas, talvez não saiba disso.

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NOMENCLATURA https://emtempo.blogfolha.uol.com.br/2019/02/15/nomenclatura/ https://emtempo.blogfolha.uol.com.br/2019/02/15/nomenclatura/#respond Fri, 15 Feb 2019 04:00:40 +0000 https://emtempo.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/dictionary-390027_640-320x215.jpg http://emtempo.blogfolha.uol.com.br/?p=25 Antes de seguir com o blog, vale tratar da terminologia. Há um punhado de termos usados no lugar de velhice. Que vem do latim vetus, “velho, idoso”, literalmente “do ano anterior”. A partir de uma fonte Indo-Europeia, wetos, que tem a ver com “anoso” isto é, “com anos, entrado em idade”.
As tentativas de emplacar outros termos incluem terceira idade, melhor idade, anos dourados. Para a série de documentários Envelhecer, que estou preparando para o SESCTV, conversei com especialistas da área, mas não encontrei nenhum defensor desses supostos sinônimos.
Alexandre Kalache, epidemiologista especializado no estudo do envelhecimento, co-presidente da Aliança Global de Centros de Longevidade Internacionais: “Melhor idade não existe. É aquela que você tem seja qual for e o que você tem qualidade de vida, que você possa estar independente, que você tenha autonomia, são dois conceitos diferentes, independência, você realizar atividades do dia a dia sem uma ajuda imediata para comer, para escovar o dente, para fazer um pagamento. Autonomia, não, você pode estar dependente numa cadeira de rodas, você pode ter problemas físicos locomotores, o que seja, mas você vive a sua vida de acordo com suas regras, com os seus desejos. E autonomia é muito mais nobre do que a independência, você pode estar aqui numa cadeira de rodas, mas você determina a que horas você vai comer, a que horas você vai sair, você mantém a vida de acordo como você quer. E de repente você pode acabar numa instituição em que a hora de comer está pré-determinada, você não pode mais decidir quando vai sair ou voltar, a que horas vai dormir, se vai ler até mais tarde, que eu ver TV ou fazer um Skype com meu filho que mora em Londres às dez da noite.
Beltrina Corte, jornalista e professora, coordenadora do grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação também torce o nariz para os eufemismos. Acredita que melhor seria aceitar a realidade, os cabelos brancos, as rugas, um corpo mais quadrado e ter orgulho em vez de vergonha, como aconteceu com as feministas: “Falta pra nós termos orgulho de sermos velhos. Os velhos não têm orgulho de ser velhos. Pra mim é indiferente o termo, terceira idade, quarta idade, mas essa ojeriza, essa forma de se afastar cada vez mais, esse nosso processo de finitude, leva as pessoas a inventarem outros nomes. Sinceramente, acho que a gente tem que assumir a velhice e dizer eu sou velha e trabalhar esse preconceito em relação à nomenclatura”.
Ana Claudia Quintana Arantes, médica, formada pela USP com residência em Geriatria e Gerontologia no Hospital das Clínicas da FMUSP e pós-graduada em Psicologia tem se dedicado aos cuidados paliativos. Acha que por trás desses termos está a indústria da autoajuda, que quer apagar a sensação de fracasso. Missão impossível: “A gente tem uma coleção de situações e de coisas que dão errado e a gente não aprende a lidar com o que dá errado. E a gente busca, de uma forma muito inocente, a questão de dar certo. Mas o que é dar certo, qual é o pulo do gato? Se você aprender a perder, você nunca tem fracasso. Porque você vai entender que a sua perda faz parte do seu aprendizado, você estará preparado pra perder. E aí é totalmente diferente de experimentar fracasso. Fracasso é quando você tinha certeza que você ia ganhar e você perde, você não sabe lidar com essa perda. Aí, você fracassou. Agora, se você estava lutando pra ganhar e você perdeu, mas você fez o melhor que você podia, isso não é fracasso”.
A psicóloga Anita Liberalesso Neri, da Unicamp, atribui a criação do termo terceira idade a uma tentativa de negação: “É um eufemismo. Felizmente cresce o número de idosos ou quase idosos que tem crítica com relação a esse rótulo como: “melhor idade”, ou outro: “idade dourada”, e outros parecidos. Esse rótulo foi cunhado no bojo de um movimento que tentava aumentar a probabilidade de que os idosos se cuidassem. As pessoas foram responsabilizadas pelo seu próprio envelhecimento. A gente escuta muitas coisas, às vezes mimetizando palavras de outras línguas, por exemplo “adulto maior”, no sentido de que ele é maior porque ele é o maioral, ele é o melhor, não, as pessoas tomaram do espanhol essa expressão pra significar o que ela não significa, né. Velhice é a última etapa do ciclo vital, você envelhece a partir do momento que você amadureceu sexualmente. Se o ser humano fosse importante apenas em termos biológicos, ele morreria logo depois de deixar de procriar. A cultura criou a velhice. E criou uma velhice cada vez mais longa. Hoje muitas pessoas tem uma grande chance de passar uma parte substantiva de sua vida, maior muitas vezes que a vida adulta, como idosos, do que como adultos. É uma grande conquista da humanidade, uma grande conquista da cultura. Mas não tem melhor idade, maior idade, etc… etc… Velhice, e pronto.”

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